“Você sabe dizer onde está. Sabe que lugar é esse?”. A voz de mulher aparece ao fundo, enquanto Rafael (nome fictício) deita desorientadamente sobre um sofá. O corpo dele está enrijecido, as mãos travadas próximas ao pescoço, enquanto os olhos se fecham em sono profundo. Antes de ser colocado num lugar confortável e seguro, o rapaz, turista gaúcho, fora encontrado desacordado na areia da praia de Copacabana, na Zona Sul. Estava sem pertences e sozinho.
De férias no Rio com amigos, Rafael havia marcado de se encontrar naquela praia com um garoto que havia conhecido num aplicativo de relacionamento LGBTQIAP+. A data combinada foi 22 de janeiro. Ele saiu às 9h de Niterói, onde estava hospedado, foi de barca até a Praça XV e seguiu para Copacabana. O homem, no entanto, chegou às 14h, acompanhado por dois meninos: todos jovens, bonitos, de estatura mediana e bem arrumados. A memória de Rafael guardou o momento até a terceira caipirinha. Depois, ele apagou, sentado ainda na areia da praia.
Uma banhista o encontrou e resolveu ajudar. Por sorte, ele havia marcado com amigos naquele ponto mais tarde, e logo eles chegaram e se somaram à moça. Todos precisaram aguardar a melhora dele para irem a uma delegacia registrar a situação — e o roubo do celular, hoje avaliado em cerca de R$ 4 mil. O caso ficou a cargo da 12ª DP (Copacabana) que, em seis dias, concluiu a investigação e indiciou seis pelo crime: os rapazes da praia tiveram ajuda ao fazerem transferências de quase R$ 9 mil das contas de Rafael. Nenhum deles teve a prisão decretada pela Justiça e respondem em liberdade.
Em geral, crimes como esse são registrados na forma do artigo 157 do código penal, o roubo, agravado pelo fato da vítima ter sido dopada. A partir de uma atualização no sistema da Polícia Civil, no mês passado, os agentes poderão filtrar os casos não só por essa tipificação, mas também pelo apelido que a ilustra, o “Boa noite, Cinderela”.
Desde 2024, ao menos 20 casos como esse aconteceram no Rio de Janeiro, segundo matérias publicadas pelo Globo. Todos eles têm semelhanças. As vítimas, por exemplo, são na maioria das vezes turistas nacionais ou internacionais, que conheceram os ladrões em bares e sambas pela Lapa ou Pedra do Sal, ambos pontos turísticos do Centro da cidade. Desses lugares, eles migram para as acomodações do viajante, geralmente, em hotéis ou casas de temporada pela Zona Sul.
Foi dessa forma que um casal de amigos em turismo no Rio foi dopado por uma dupla na Lapa, em junho do ano passado. Eles estavam em um bar, quando foram abordados pelos golpistas — um homem e uma mulher jovens. Os quatro ficaram bebendo e conversando até que, de madrugada, decidiram ir em grupo para o hotel onde as vítimas se hospedaram em Copacabana. Ao chegarem no apartamento, elas foram dopadas com bebidas e apagaram enquanto os criminosos carregavam pertences, incluindo eletrodomésticos do imóvel — um vídeo mostra a mulher saindo do elevador com uma televisão em mãos. Eles também não tiveram prisão decretada e respondem o processo em liberdade.
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— Os turistas são alvos fáceis por não conhecerem a cidade, a dinâmica de como as coisas funcionam por aqui. Então, eles ficam menos alerta, mais entusiasmados com a possibilidade de sair, conhecer alguém… Também acredito que os criminosos miram essas pessoas por saberem que uma hora elas vão embora e, de alguma forma, podem não registrar o caso ou ter mais dificuldade de acompanhar as investigações por estarem longe — deduz o delegado Ângelo Lages, titular da 12ª DP.
No último dia 8, o argentino Alejandro Mario Ainsworth, de 54 anos, foi encontrado morto na Estrada da Grota Funda, entre Recreio e Guaratiba, na agora chamada Zona Sudoeste. O crime, primeiro registrado na Delegacia Especial de Apoio ao Turismo (Deat), começou em Copacabana, de onde o turista saiu de uma casa noturna na companhia de Vítor dos Santos Oliveira. Os dois ficaram andando pelo bairro, até migrarem para o outro lado da cidade. Com a localização do corpo, a Delegacia de Homicídios da Capital assumiu as investigações e prendeu o suspeito em São Paulo nessa segunda-feira.
Foi também na Deat que se registrou o golpe contra dois britânicos em Ipanema, no início de agosto. Esse caso ganhou repercussão a partir de um vídeo dos homens cambaleando pela praia, desorientados — um deles chegou a cair com o rosto na areia. Eles foram socorridos e levados para a UPA de Copacabana, onde ficaram até recuperar a consciência. Em depoimento, eles contaram ter conhecido três mulheres num samba na Lapa e as acompanharam até Ipanema, onde foram dopados e roubados. O prejuízo chegou a mais de R$ 116 mil.
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— A gente percebe que as principais vítimas desse golpe são turistas e homossexuais. Recebemos casos assim praticamente toda semana: encontro no Centro, golpe na Zona Sul. Por aplicativo de relacionamento também. Há pelo menos cinco anos investigamos crimes que começaram por troca de mensagens em plataformas de encontros LGBTQIAP+. Não estamos aqui para afetar a liberdade sexual de ninguém, mas é sempre bom reforçar o cuidado ao se encontrar com desconhecidos, evitar se colocar em risco — destaca Patrícia Alemany, titular da Deat.
As mulheres que roubaram os britânicos foram reconhecidas: Amanda Couto Deloca, de 23 anos, Mayara Ketelyn Americo da Silva, de 27, e Raiane Campos de Oliveira, de 28, a única ainda foragida.
Nessa delegacia, inclusive, há sofás para as vítimas do “Boa noite, Cinderela” se recuperarem da alta dosagem de tranquilizantes. A delegada explica que dificilmente é possível detectar o remédio que os golpistas aplicam, tanto porque as vítimas costumam receber remédios nos atendimentos médicos, quanto porque demoram para registrar as ocorrências e fazer exame de corpo de delito. Além disso, ela pontua que a combinação dessas drogas com outros entorpecentes, legais ou não, e com comorbidades pode aumentar a chance da vítima ir a óbito.
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Lages e Alemany também observam que os suspeitos são, em sua maioria, moradores da Baixada Fluminense, principalmente das cidades de Duque de Caxias, Belford Roxo e São João de Meriti. Na capital, moram pela Zona Oeste e, em alguns casos, se dispersam em comunidades do Centro e da Zona Norte.