Um relato publicado no X (antigo Twitter) nesta semana viralizou ao descrever uma experiência traumática vivida por uma participante de um “acampamento evangélico imersivo”. Segundo o post, o retiro simulava uma perseguição a cristãos, com pessoas se passando por muçulmanos e submetendo os participantes a tortura psicológica e condições degradantes — tudo isso sem qualquer suporte médico.
Esses “retiros religiosos” são organizados por diferentes entidades que buscam levar os cristãos à reflexão sobre a liberdade religiosa, dentro da perspectiva de uma “igreja livre”. Os projetos, quase sempre com “radical” no nome, atuam em diversas regiões do Brasil e dizem ter como foco o incentivo à evangelização e às missões. No entanto, os organizadores não explicam previamente como os retiros funcionam — e ainda proíbem os participantes de relatar o que acontece durante as atividades.
A autora da publicação, que já alcançou mais de 3 milhões de visualizações, revelou que os participantes eram forçados a passar fome, sede e a dormir no chão frio.
“Também deram pé de galinha cru pra gente comer, amarraram cordas com nó de forca nas árvores”, escreveu em um dos trechos. O caso aconteceu em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Segundo o post, o objetivo do evento era mostrar “como o mundo é hostil” e incentivar os participantes a “serem gratos a Deus”.
com 16 fui arrastada pra um acampamento evangelico “imersivo” onde crentes vestidos de muçulmanos terroristas ficavam nos atordoando o dia inteiro . fizeram a gente passar fome e sede, dormir no chao frio, jogaram nois na lama e nos deram 1 min de banho (assistiram a gente tomar) https://t.co/hL5UOzuaOe
— becca (@mechafartzilla) July 14, 2025
Nos comentários, outros internautas passaram a relatar experiências parecidas em acampamentos supostamente religiosos.


O TEMPO REAL também ouviu o relato de uma vítima de um retiro semelhante ocorrido em dezembro de 2019, em Maricá, na Região Metropolitana do Rio, organizado por uma denominação evangélica de Niterói. Ela, que preferiu não se identificar, contou que foi ao acampamento com uma amiga, sem saber o que a esperava.
“No ônibus disseram que seria um retiro com piscina, churrasco e várias coisas legais. Mas em um determinado momento, entraram supostos muçulmanos com toucas de ninja e armas de airsoft. Cercaram o ônibus, simularam um sequestro e começaram a intimidar todo mundo”, afirmou.
Segundo ela, o que deveria ser um momento de fé se transformou em um cenário de tortura psicológica.
“Obrigaram todo mundo a mergulhar no lodo e na lama, com ameaças de que, se a gente não mergulhasse, eles afundariam nossa cabeça. Não deixaram tomar banho e trancaram a gente em um cativeiro improvisado”, relatou.
Ela contou ainda que os participantes eram proibidos de falar sobre o que acontecia no local. “Se era pra sair melhor de lá, comigo foi o contrário. Eu nunca mais quero saber disso”, desabafou.
O que dizem os especialistas
De acordo com o advogado Amir Mazloum, a representação estereotipada de muçulmanos como terroristas pode configurar crime de intolerância religiosa — especialmente em eventos religiosos.
“Esse tipo de encenação reforça preconceitos sociais e alimenta a islamofobia, retratando uma fé inteira como se fosse uma ameaça, o que atinge diretamente o direito coletivo à liberdade religiosa, à imagem e à dignidade dos muçulmanos enquanto grupo religioso”, explicou.
Amir também aponta possíveis crimes praticados nesses retiros, como cárcere privado e até tortura.
“Experiências religiosas, ainda que com objetivos espirituais ou pedagógicos, não podem ultrapassar os limites impostos pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional — especialmente no que diz respeito à dignidade da pessoa humana, à integridade física e psíquica e à liberdade individual”, afirmou.
Nesse caso, quando um retiro ou acampamento submete os participantes a privações extremas como fome, sede, frio, sono, medo psicológico intenso, vigilância armada ou simulações de tortura, com ou sem consentimento explícito, é possível que se configure o crime de tortura, conforme previsto em lei.
“A suposta ‘adesão voluntária’ ao acampamento não exclui a ilicitude, sobretudo quando há manipulação emocional, omissão sobre o que será vivenciado ou imposição de condições abusivas que fogem completamente ao que foi informado previamente”, concluiu Amir.
Além disso, também há uma preocupação de que tais práticas afetem a saúde mental, já que não existem evidências que comprovem benefícios espirituais a longo prazo. No Brasil, ainda não há uma cultura consolidada de preparação emocional para experiências imersivas de alto impacto, resultando na criação de novos traumas em vez de curas espirituais.
“Ao serem expostos a experiências que simulam sequestros, perseguições, ambientes de medo, ou privação sensorial, o cérebro humano ativa os mesmos mecanismos neurobiológicos de uma ameaça real. Isso pode desencadear crises de ansiedade e pânico, surtos psicóticos, reativação de traumas antigos, comportamentos dissociativos, estresse pós-traumático (TEPT) e problemas de sono, concentração e confiança”, explicou a psiquiatra Lidiane Silva.
Ela ainda explicou que toda atividade intensa deve ser precedida por uma triagem psicológica mínima e um ambiente de segurança afetiva.
“A espiritualidade e o cuidado com a mente precisam andar juntos, promovendo cura e crescimento, não sofrimento”, disse Lidiane.
A reportagem não conseguiu contato com as organizadoras desses retiros. O TEMPO REAL também procurou a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância para explicar quais os limites desse tipo de experiência, mas a Polícia Civil preferiu não se manifestar. O espaço segue aberto para novos posicionamentos.
O contraponto
Apesar dos relatos traumáticos, há quem defenda esse tipo de experiência. É o caso da evangélica Divânia Gomes, que participou de um desses retiros, em São Gonçalo, também na Região Metropolitana, pouco depois da morte do marido. Para ela, a vivência foi transformadora.
“Eu fui com o coração aberto e, quando cheguei lá, tive um choque. Mas algumas experiências me marcaram muito, e foi algo incrível para mim. Me senti amada, confortada e abraçada pelo Espírito Santo”, relatou.
Já pastor Estevão Lira, de uma denominação evangélica da Ilha do Governador, Zona Norte do Rio, explicou que essas experiências imersivas são formas legítimas de reflexão espiritual, desde que realizadas com responsabilidade e transparência. Enfatizou ainda que nenhuma prática que comprometa a dignidade física e emocional deve ser tolerada em nome da fé.
“Esses retiros são experiências profundas de fé, que nos tiram do conforto para nos lembrar do preço que tantos irmãos pagam ao redor do mundo por seguir a Cristo”, emendou o pastor.
Assim, os diferentes relatos e interpretações sobre esses retiros escancaram uma realidade complexa, que envolve fé, limites e escolhas pessoais.