O Cais do Valongo, na Região Portuária do Rio, funcionou, por anos, como o maior porto de desembarque de negros africanos escravizados do país. Mas, além dele, há outros lugares que guardam, silenciosamente, as as cicatrizes desse período — muitas vezes esquecidas ou ignoradas.
Após desembarcarem no porto, os africanos escravizados eram submetidos a leilões a céu aberto. Depois, compradores os levavam como “mercadorias” para lojas próprias, onde seriam revendidos a “brancos comuns”. Essas lojas ainda existem até hoje e, ironicamente, mantêm a função de vendas — hoje em dia, são farmácias e lojas de peças de carros.
“Esses negros escravizados eram levados para lojas próximas ao Cais do Valongo, que ainda estão de pé. Hoje, por exemplo, funcionam como farmácias e lojas de peças de carros”, explica Rafael Moraes, turismólogo do Instituto Pretos Novos (IPN).
Para ele, a manutenção dessas lojas até hoje como centros comerciais reforça a invisibilidade da história negra na cidade:
“Quando falamos em apagamento e percebemos que essas lojas estão ali até hoje, entendemos o quão profundo ele é.”

Além do Cais do Valongo, outras ruas do Centro do Rio também concentravam a venda de escravizados, como a antiga Rua da Direita — atual Primeiro de Março —, a Sacadura Cabral e a Camerino. As estruturas físicas desses estabelecimentos ainda resistem, enquanto o passado da escravidão que ali existiu é muitas vezes varrido para debaixo do tapete.
“As pessoas negras que moram na Baixada e trabalham no Centro do Rio passam, todos os dias, em frente a onde seus ancestrais, anos atrás, eram comercializados. E ninguém sabe disso”, completou Rafael.

O Brasil como maior destino do tráfico transatlântico
Colônia de Portugal, o Brasil se tornou, desde o século XVI, o maior destino do tráfico negreiro das Américas. Os portugueses foram os primeiros europeus a escravizar africanos — ainda em 1490 — e, pouco depois da chegada ao Brasil, começaram a trazer escravizados para a nova colônia. Uma das principais origens desse tráfico era a Ilha de Gorée, no Senegal — considerada o maior entreposto de escravizados do continente africano.
“Eu encontrei entre os senegaleses a maior consciência sobre a Diáspora Africana. Uma vez, enquanto apoiava gravações em um museu, uma professora me apresentou aos alunos como descendente daqueles que um dia saíram dali”, contou Carlos Medeiros, pesquisador e autor de um documentário sobre a ilha.
Medeiros viajou duas vezes ao Senegal para produzir um documentário, que ajudou a impulsionar a campanha que transformou Gorée em Patrimônio da Humanidade pela Unesco, título conquistado em 1978. Segundo ele, aproximadamente cinco milhões de africanos escravizados saíram dessa ilha apenas em direção ao Brasil.
“A maioria vinha para cá por causa da distância menor. Como as viagens eram mais curtas, morriam menos pessoas a bordo — o que tornava o tráfico mais lucrativo”, explicou Medeiros.
Memória apagada
Apesar de o Rio ter sido o principal porto do tráfico negreiro e a maior cidade escravista das Américas, a maior parte desses espaços foi soterrada pelo esquecimento — ou pela intenção de apagamento.
Além de as estruturas das lojas terem sido mantidas desde aquela época sem que se conte que os locais eram pontos de venda de escravos, o Jardim Suspenso do Valongo é outro exemplo do esvaziamento dessa memória.
Segundo o urbanista Matheus Ribeiro Cunha, da UFRJ, o local foi erguido com o objetivo de “embranquecer” a paisagem do território negro da Pequena África, apagando seus traços culturais. O jardim foi construído em 1906, já na gestão de Pereira Passos, como parte do projeto “Bota-Abaixo”.
“O jardim é um marco na estruturação das camadas que se sobrepõem à Pequena África”, escreveu Cunha na pesquisa Memórias da Paisagem: do Jardim Suspenso do Valongo para o novo olhar da Pequena África.
Recontando a história

Hoje, o Cais do Valongo abriga o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), criado em 2005 com o objetivo de valorizar a memória e a identidade cultural brasileira da diáspora. Na intenção de reviver a história, o Instituto criou um novo percurso guiado, que vai cruzar o Centro do Rio longe dos pontos turísticos mais óbvios.
Em vez de monumentos imperiais ou cartões-postais, o foco está nas rotas silenciosas onde a cidade se ergueu sobre séculos de exploração e resistência negra.
O circuito “Mercado a Mercado” começa no dia 26 de julho, ligando dois antigos centros do tráfico de pessoas escravizadas: o mercado da antiga Rua Direita e o Cais.
“Não contar a história também é apagá-la. Aqui no Instituto a gente faz esse caminho para contar a história que nunca foi contada“, concluiu Rafael.